Artigo: Combater o tráfico de droga, cuidar das dependências
Combater o tráfico de droga, cuidar das dependências
Em artigo publicado no Expresso, José Soeiro pergunta: «O PS mudou de opinião sobre a política de drogas?». Presumimos que a pergunta seja retórica, porque o autor sabe a resposta. Em todo o caso, aqui vai: não, não mudou. O PS foi o autor do paradigma em vigor e orgulha-se muito do património construído e dos seus resultados ao longo de mais de vinte anos.
Resolvida essa dúvida que tantos caracteres ocupou, vamos à substância do tema.
O artigo foi suscitado por uma proposta de recomendação apresentada esta semana em reunião de vereação da Câmara Municipal do Porto pelo grupo municipal de Rui Moreira e que mereceu o voto favorável dos eleitos do PS. A proposta, intitulada «Prioridade à investigação do crime de tráfico de estupefacientes e outras medidas no âmbito da legislação de combate à droga», propõe três medidas ao Governo para fazer face ao flagelo do tráfico e consumo de droga na cidade do Porto, merecendo um debate em sede de reunião pública de executivo que está disponível para quem queira vê-lo. Para além do debate, os eleitos do PS anexaram uma declaração de voto por escrito com três páginas que reproduz o essencial da nossa posição sobre a matéria, apresentada em reunião de Câmara, a saber:
- Portugal é uma referência internacional no tratamento da toxicodependência e o PS reitera que é no quadro da saúde pública (e não da polícia) que este problema deve ser enquadrado e aprofundado, não aceitando qualquer regressão neste âmbito. A política de combate à droga em Portugal é um sucesso sob todos os pontos de vista, correspondendo a uma resposta liderada pelo PS no ano de 2000;
- A sala de consumo assistido no Porto, que em apenas três meses já acompanhou mais de 600 utentes, evidencia o sucesso de uma estratégia assente na saúde pública e esta resposta estabelece uma nova abordagem relativamente ao consumo de droga na cidade e aos espaços onde ela deve estar concentrada;
- Discordamos da posição expressa nos considerandos da proposta de recomendação (ponto 2), ao afirmar que «esta é uma situação de verdadeira emergência social, não se assistindo à actuação eficaz das forças de segurança públicas para pôr fim a este flagelo social»: os problemas sociais não se resolvem com a polícia;
- Os problemas relacionados com o tráfico de droga na zona dos bairros de Dr. Nuno Pinheiro Torres e da Pasteleira, entre outros na cidade (Francos, Ramalde do Meio, Viso, Cerco, entre outros) têm uma relação directa com opções seguidas pelo município para as quais, à época, não nos cansamos de alertar: é disso exemplo a demolição do Bairro do Aleixo decidida pela então maioria PSD/CDS-PP liderada por Rui Rio, que agravou substancialmente os problemas do tráfico de droga e da sua dispersão por toda a cidade, sem qualquer acompanhamento sanitário e social para os consumidores de droga e para os antigos moradores que foram deslocados à força;
- Estes problemas subsistem ao nível da actual estrutura urbanística do bairro da Pasteleira Nova, que facilita enormemente a dinâmica do tráfico de droga e limita a capacidade de intervenção das forças policiais, devendo levar a uma intervenção do município para a sua reconfiguração interna;
- No que diz respeito à intervenção das forças de segurança, as percepções também não podem ignorar a realidade de uma acção constante e diária no terreno: em 2022 foram realizadas 1859 acções policiais nos bairros da Pasteleira e de Dr. Nuno Pinheiro Torres, com envolvimento de 5684 agentes, permitindo a apreensão de milhares de doses de droga e diversos processos no âmbito do tráfico de droga;
- Ao contrário do que é dito na proposta de recomendação, o combate ao tráfico de estupefacientes já está nas prioridades definidas na lei de política criminal (alínea b) do artigo 4º) e, mais ainda, no contexto da prevenção da criminalidade, é destacado claramente o papel dos conselhos municipais de segurança, pelo que é importante os municípios desenvolverem as suas estratégias;
- O PS conhece em profundidade e acompanha com proximidade o flagelo social associado ao tráfico de droga e ao seu consumo na cidade, em particular na zona da Pasteleira e Dr. Nuno Pinheiro Torres, visitando frequentemente a área, auscultando e dialogando com as associações de moradores (incluindo a recém-criada Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira Nova), as IPSS, o comando da PSP e outras entidades no terreno;
- Conhecemos o drama social provocado pelo consumo de droga e os problemas daí advenientes para toda a população, em particular para os moradores dos bairros sociais que vivem sob um regime de terror provocado pelo narcotráfico: recebemos semanalmente pedidos desesperados de ajuda e intervenção, incluindo de famílias com crianças que convivem lado a lado com quem trafica e estimula o consumo;
- Conhecemos também o que se passa em torno das escolas e ATL’s da zona, que se deparam com uma realidade chocante e imprópria para tantas crianças já de si socialmente fragilizadas, como as que frequentam a Escola das Condominhas ou as instalações da Associação de Promoção Social da População do Bairro do Aleixo, que diariamente vêem o seu espaço transformado em salas de chuto a céu aberto;
- Segundo o princípio adoptado pelo PS Porto, e que reiteramos na última campanha eleitoral autárquica, de «combater o tráfico e cuidar das dependências», que inscrevemos no nosso programa após inúmeras reuniões, visitas ao terreno e auscultação de especialistas, estamos de acordo com medidas que reforcem inequivocamente a proibição do consumo de drogas em zonas sensíveis, desde logo junto a escolas;
O sentido de voto do PS em reunião de executivo foi expresso atendendo a estes pressupostos e a um esforço de consenso e mobilização local para dar corpo ao justo equilíbrio entre os direitos e os deveres de todos.
As moções e propostas de recomendação em sede de executivo municipal não têm qualquer força legal ou regulamentar, correspondendo antes a declarações de princípios e resoluções para as quais, sempre, procuramos o máximo de consenso em nome da cidade que representamos mesmo quando não concordamos estritamente com os termos: é algo que sempre fizemos e faremos em relação a todas as forças políticas, incluindo naturalmente com o Bloco de Esquerda.
No caso concreto, entendemos que é impossível ignorar o que se passa e não podemos permitir que o descontrolo que se vive na zona de Lordelo do Ouro leve a uma resposta popular contrária a uma abordagem progressista e humanista, que queremos preservar. Porque os direitos de uns não podem colocar em causa os direitos de todos: à tranquilidade, ao bem-estar, à saúde pública e à segurança, num esforço que naturalmente envolve o município e o Estado Central.
Nesse sentido, ao mesmo tempo que finalmente se avançou com a sala de consumo assistido, temos de perceber como e onde podemos avançar e melhorar noutras matérias. Porque nenhuma política é imutável e há muito por onde melhorar. Ao nível das dependências, por exemplo, é fundamental recuperar um organismo como o Instituto da Droga e da Toxicodependência, dissolvido por um Governo PSD/CDS, concentrando as políticas públicas às adições e a articulação com as entidades no terreno. É também importante revisitar as condições para garantir a proibição do consumo na via pública, em particular junto a escolas.
Por fim, em relação ao combate ao tráfico, que nada tem a ver com a abordagem ao consumo e que parece estar a ser convenientemente misturado de forma demagógica neste debate, entendemos também que podemos fazer mais para um combate sem tréguas a quem trafica, destrói vidas e sequestra zonas da cidade, revisitando o enquadramento existente, reforçando a capacidade de actuação dos meios de investigação criminal e, entre outros, a perda de direito a habitação municipal para quem aí trafica.
Tudo isto assenta numa abordagem multidimensional, estruturada em todos os pontos referidos anteriormente (incluindo os urbanísticos). Desconhecemos, em concreto, se o Bloco de Esquerda discorda de tudo isto. Sabemos é que o assunto é demasiado sério para que, a troco de uns cliques, se agite uma falsa indignação e uma exaltação artificial.
Quando a demagogia se substitui ao debate sério, perdemos todos.
Artigo publicado no Expresso